quinta-feira, 23 de junho de 2011

O jovem e o inexorável

Abri a porta do armário e me abaixei. Parei ali, olhando as muitas caixas, latas e sacos de mantimentos, por breves segundos esquecera o que buscava. Com a mente regressa alcancei a caixa de papelão de leite de vaca industrializado. Com ela na mão me levantei, sem dificuldades, para o peso que carregava em algum lugar dentro de mim. Haveria de ser assim até cruzar todas as manhãs e crepúsculos da minha vida. Eu me sentia, pulsava dentro do corpo. Não me esperavam nenhuma apresentação em frente de público, nenhum primeiro dia de trabalho, nenhuma cirurgia com risco de morte. Eu apenas sentia o meu relógio. O tempo que marcava exatamente quantas batidas meu coração daria. E não era fácil saber que cada ato estava sendo contabilizado, numa matemática de números exatos. Que conta sem erro me dava a sentir a sensação de bomba-relógio. Quando me atirava da janela do último andar e não gritava de medo, a cada dia eu vivia mais que morria, minha endorfina da falta de entendimento do tamanho de tudo se mostrava no sangue bombeado rápido, eu vivia muito mais que morria! Derramei no copo transparente aquele líquido branco até a boca; como conseguiam ser tão incolores e alvos? Como conseguiam não se impregnar do ambiente, das cores, das caras, horrores e malas que víamos e carregávamos? Eu sabia que cada dia acordaria diferente, que cada despertar puxaria energia de algum lugar do universo para me dar. Mas era mais uma noite, e ainda não chegara a hora. O corpo moído pedia por se desligar de responder aos meus impulsos com consciência, mas para seres sem botão a mais que o inútil umbigo, o descontrole é normal.
“Estou deitado, cabeça no travesseiro, coração descompensado, não sei pelo que anseio. Achei o problema: estou estático em meio termo, meu corpo repousa em bom tom, minha mente em lugar alheio, caminha feito gente, de cá ouço suas pisadas, batidas de algum paradeiro vêm parar em meu peito. Viro-me de lado, procuro não pensar, continuo parado e a vagar – Ô mente, dizes que és minha e só andas por aí, assim não sei a que veio.”
Eu tentava sem resultado persuadi-la a me deixar dormir, mas justamente por isso ela não relaxava e então outro estalo de perplexidade, misturado com deslumbramento numa bacia de incertezas. De bruços ouvia o tambor abafado que fazia o colchão tremer, me deixava mais aflito. De barriga para cima tentava escapar do barulho, e sentia se corromper lentamente a sensação da minha crença de cotidiano indiferente ao tempo, se exibiam nos rugidos dos motores e sombras que os carros na rua faziam dentro do quarto, tudo passava e estava passível de soçobrar; eu não tinha controle algum: meus órgãos se enfraqueciam à medida que eu juntava mais memórias, minha mãe morreria e eu nunca seria bom pra ela como ela é pra mim e mal me dava conta disso tudo. Porque quanto mais eu morria mais queria me fincar na vida, talvez por isso eu esnobasse e não desse metade do valor ao amor que cobriria a superfície de todas as águas, porque esse amor nada alteraria. Amor de mãe não dança no vento, eu poderia me rejeitar e querer acabar à hora que quisesse, ela se doaria aos céus para não me ver partir.
Para qualquer lugar em que minha convicção errante se funda ao impulso de bem terreno. Sem ímpeto teria se tornado tão somente espera, como em recepção de consultório médico sem um livro ou revista abertos ao colo, simples aguardo da espera por cura. É preciso saber das coisas, sentir coincidência, saber sentir...
Eu tinha meu livro de cabeceira, ao qual nunca terminara, aberto ao colo. As palavras aglomeradas no papel um dia abriram meu sono; quando ainda sonolento de sono tranquilo, e recompositor das virtudes de uma criança inocente e míope. Lá o rapaz Dante descera ao inferno, voltara à terra fria para poder subir ao céu. E escrevia aquilo tudo porque tinha suporte divino para aguentar o vício e enjoo humano do longo tempo preso, ao embora lento, operante trajeto de purificar. Eu não tinha meus óculos ao rosto e aproximava as miúdas letras. O embaçado me doía a vista. Foco para rumar.
Sou gentio que corre às gentilezas de ser assim: necessitado de viver em terrenos sem cerca, baldios e sem cultivo prévio. Pela semeadura e colheita arrancar de alguém algo que não seja mundano e sujo, que mareie os olhos e faça esquecer o implacável que faz tudo passar, é o que um viciado como eu pode fazer: tirar da razão o cabimento de virar substância pura. A carne à salmoura em seus três breves dias nutre o ciclo que me vicia com seus prazeres instantâneos; a proximidade entre a vontade, o feitiço e a podridão. Embora sinta e por isso saiba, mal me acostumo nesse quarto fechado em que peido gases maléficos só para sentir alívio.
O devaneio apareceu como viver, mesmo dormindo, realíssimo. Afinal sonhos não eram irreais, irreal era o que não fazia parte do meu real. Os devaneios e sonhos eram filmes na minha mente. Com a musculatura do abdômen tensa abri devagar os olhos. Eu sabia que estava indo embora, a vazão da minha válvula de vida escancarada me lançava calafrios, suor nas mãos e pés, insônias, calores, arrepios, desalinhos e viagens à lua, todos repentinos e ordenados de jeito ininteligível. Fora o congelamento de estômago; sentia uma fricção de angústia tão poderosa que me corroia por dentro e então eu já não era mais que uma estátua expectadora e amedrontada. Não dormi. Em mim morava o amanhã cheio de surpresas, de tudo sabia de quase nada, apenas mais um dia em que não apodrecera. Viver é perder os óculos da inocência, retomar as lentes de graus, buscar nitidez e ir ver.

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