sexta-feira, 13 de maio de 2011

Sobre ser só

Eu vou transcrever em dois atos nessas páginas amareladas o homem mais só dos Buendía, o coronel Aurealiano. Talvez eu tenha algum parentesco distante...



Naquela noite interminável, enquanto o Coronel Gerineldo Márquez evocava as suas tardes mortas no quarto de costura de Amaranta, o Coronel Aureliano Buendía arranhou durante muitas horas, tentando rompê-la, a dura casca da sua solidão. Os seus únicos momentos felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levara para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde passava o tempo armando peixinhos de ouro. Tivera que promover 32 guerras, e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade.



Na mesma noite em que a sua autoridade foi reconhecida por todos os comandos rebeldes, acordou sobressaltado, pedindo aos gritos uma manta. Um frio interior que lhe rachava os ossos e o mortificava inclusive em pleno sol impediu-lhe de dormir bem por vários meses, até que se transformou num hábito. A embriaguez do poder começou a se decompor em faixas de tédio. Procurando um remédio contra o frio, mandou fuzilar o jovem oficial que propôs o assassinato do General Teófilo Vargas. As suas ordens eram cumpridas antes de serem anunciadas, mesmo antes que ele as concebesse,
e sempre iam muito mais longe do que ele se atreveria a fazê-las chegar. Extraviado na solidão do seu imenso poder, começou a perder o rumo. Incomodava-o o povo que o aclamava nas aldeias vencidas, e que lhe parecia o mesmo que aclamava o inimigo. Em toda parte encontrava adolescentes que o olhavam com os próprios olhos, que falavam com a sua própria voz, que o cumprimentavam com a mesma desconfiança com que ele os cumprimentava, e que diziam ser seus filhos. Sentiu-se jogado, repelido, e mais solitário do que nunca. Teve a certeza de que os seus próprios oficiais lhe mentiam. Brigou com o Duque de Marlborough. "O melhor amigo," costumava dizer então, "é o que acaba de morrer." Cansou-se da incerteza, do círculo vicioso daquela guerra eterna que sempre o encontrava no mesmo lugar, só que cada vez mais velho, mais acabado, mais sem saber por que, nem como, nem até quando. Sempre havia alguém fora do círculo de giz. Alguém que precisava de dinheiro, que tinha um filho com coqueluche ou que queria ir dormir para sempre porque já não podia suportar na boca o gosto de merda da guerra e que, entretanto, reunia as suas últimas reservas de energia para informar: "Tudo normal, coronel." E a normalidade era precisamente o mais terrível daquela guerra infinita: não acontecia nada. Sozinho, abandonado pelos presságios, fugindo do frio que havia de acompanhá-lo até a morte, procurou um último refúgio em Macondo, ao calor das recordações mais antigas. Era tão grave a sua inércia que quando lhe anunciaram a chegada de uma comissão do seu partido, credenciada para discutir a encruzilhada da guerra, ele se mexeu na rede sem acordar de todo.

- Levem-nos às putas - disse.

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